646
Visualizações
Acesso aberto Revisado por pares
Artigo Original

Avaliação de pacientes queimados segundo a Classificação Internacional de Funcionalidade na alta hospitalar: Um estudo transversal

Assessment of burn patients according to the International Classification of Functioning at hospital discharge: A cross-sectional study

Joyce da Silva Quintal1; Renato Valduga2; Denise Ribeiro Rabelo Suzuki3

DOI: 10.5935/2595-170X.20230005

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar a capacidade funcional segundo a Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF) em pacientes vítimas de queimaduras no momento da alta hospitalar.
MÉTODO: Trata-se de um estudo transversal, observacional, descritivo, com abordagem qualiquantitativa. A pesquisa foi realizada na Unidade de Tratamento de Queimados (UTQ) do Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), em Brasília, DF. Foram coletados dados clínicos e epidemiológicos através de um roteiro semiestruturado. Após, foi realizada a avaliação da força muscular com a escala Medical Research Council (MRC), medição das amplitudes articulares das regiões queimadas com a goniometria e a aplicação da Escala de Estado Funcional em Unidade de Terapia Intensiva (FSS-ICU). As pontuações dos instrumentos foram adaptadas e correlacionadas aos códigos do core set proposto neste estudo.
RESULTADOS: Houve predomínio do sexo masculino (67,9%), com baixa escolaridade (53,6%) e emprego informal (71,4%). Inflamáveis combinados com chamas foram as causas mais comuns de queimaduras (46,4%). Verificou-se o predomínio de deficiência leve em mobilidade de várias articulações (57,1%), funções relacionadas à força muscular (64,3%) e força de músculos isolados e grupos musculares (67,9%). Em atividades e participação, os códigos avaliados mostraram que a maioria dos pacientes não apresentou nenhuma deficiência.
CONCLUSÕES: Os resultados indicam que os pacientes queimados recebem alta hospitalar apresentando comprometimento leve em funções do corpo, porém em atividades e participação a maioria dos pacientes não apresenta deficiência. Devido à falta de pesquisas na área, recomenda-se a continuidade do estudo e de novas pesquisas utilizando a CIF.

Palavras-chave: Especialidade de Fisioterapia. Queimaduras. Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde. Alta Hospitalar.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To evaluate functional capacity according to the International Classification of Functioning (ICF) in burn patients at the time of hospital discharge.
METHODS: This is a cross-sectional, observational, descriptive study with a qualitative-quantitative approach. The research was carried out at the Burn Treatment Unit (BTU) of the Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), in Brasília, DF. Clinical and epidemiological data were collected using a semi-structured script. After that, muscle strength was evaluated using the Medical Research Council Scale (MRC), joint amplitudes of the burned regions were measured using goniometry, and the Functional Status Scale for Intensive Care Unit (FSS-ICU) was applied. The instrument scores were adapted and correlated to the core set codes proposed in this study.
RESULTS: There was a predominance of males (67.9%), with low education (53.6%) and informal employment (71.4%). Flammables combined with flames were the most common causes of burns (46.4%). There was a predominance of mild disability in mobility of several joints (57.1%), functions related to muscle strength (64.3%), and strength of isolated muscles and muscle groups (67.9%). In activities and participation, the codes evaluated showed that most of the patients had no impairment.
CONCLUSIONS: The results indicate that burn patients are discharged from hospital with mild impairment in body functions, but in activities and participation most patients do not have disabilities. Due to the lack of research in the area, it is recommended that this study and new research using the ICF be continued.

Keywords: Physical Therapy Specialty. Burns. International Classification of Functioning, Disability and Health. Patient Discharge.

INTRODUÇÃO


As queimaduras são lesões decorrentes de agentes (tais como a energia térmica, química ou elétrica) capazes de produzir calor excessivo que danifique os tecidos corporais e acarrete a morte celular. São traumas potencialmente severos, não apenas pelos comprometimentos físicos (sequelas e incapacidade resultantes) e elevada mortalidade, mas também pelo impacto emocional1,2.


Conforme a Organização Mundial da Saúde, a queimadura é o 4º tipo mais comum de trauma no mundo, estando atrás apenas da violência interpessoal, quedas e acidentes de trânsito. É uma entidade traumática presente em todos os grupos sociais, porém tornou-se uma das principais causas de morbimortalidade em países de baixa e média renda, como o Brasil3,4.


No Brasil, contabiliza-se que 1 milhão de indivíduos sofram queimaduras anualmente, não havendo restrição de sexo, idade ou raça, com um grande impacto na economia. Dessa forma, as queimaduras são um importante problema de saúde pública no Brasil, sendo dispendioso ao sistema de saúde. Por conseguinte, é necessário acompanhar os pacientes a longo prazo para lidar com os possíveis comprometimentos que possam surgir5-7.


Há possibilidade de ocorrerem várias complicações em decorrência de uma queimadura. As complicações metabólicas podem ocasionar rápida perda no peso corporal, nível baixo de nitrogênio e uma redução nas reservas de energia que dificultam o processo de cicatrização, além da atrofia muscular em consequência ao uso das proteínas do tecido muscular como fonte geradora de energia. Outra complicação é a ossificação heterotópica, geralmente observada em pacientes com uma superfície corporal queimada (SCQ) de mais de 20%, sendo mais comum em áreas como cotovelos, quadris e ombros.


A neuropatia periférica também pode ser encontrada, geralmente em duas formas: a polineuropatia e a neuropatia local. A polineuropatia tem causa desconhecida, porém é frequente em indivíduos com grandes áreas de queimadura e com presença de sepse. A neuropatia local é multicausal e geralmente está relacionada a bandagens compressivas muito apertadas, talas mal colocadas, imobilização e posicionamento incorreto do paciente8.


Outra complicação recorrente é a contratura cicatricial, pois promove sequelas limitantes e desfigurantes aos pacientes. Apesar das medidas preventivas, é comum a ocorrência deste tipo de sequelas em regiões como pescoço, mãos, punhos e axilas. Essas contraturas podem causar grave comprometimento funcional, limitações às atividades cotidianas e afastamento do convívio social9.


Em resumo, as queimaduras provavelmente irão ocasionar perda muscular severa, fraqueza muscular, cicatrizes hipertróficas e contraturas, levando o paciente a comprometimento físico e, consequentemente, na funcionalidade10.


A funcionalidade é uma variável que pode ser avaliada pela Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). A CIF pertence à família das classificações internacionais desenvolvidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pode ser aplicada em vários aspectos da saúde, classificando, portanto, a funcionalidade e a incapacidade associadas aos estados de saúde. Sendo assim, a CIF fornece uma descrição de situações relacionadas às funções humanas e as suas restrições, servindo como uma estrutura para organizar essas informações de forma significativa, integrada e facilmente acessível11.


Apesar dos avanços no tratamento de pacientes com queimaduras, as sequelas resultantes estarão presentes e podem afetar de forma significativa a funcionalidade dessa população. O objetivo geral deste estudo foi avaliar a capacidade funcional segundo a CIF de pacientes vítimas de queimaduras no momento da alta hospitalar, a fim de descrever e analisar as possíveis disfunções da funcionalidade e relacionar com as características sociodemográficas dessa população e com as características da queimadura (superfície corporal queimada, local atingido, causa da queimadura, tempo de internação, procedimentos cirúrgicos e a idade da população acometida), possibilitando, dessa forma, o desenvolvimento de melhores ações e estratégias no cuidado desses pacientes, para uma melhor funcionalidade, independência nas atividades diárias e reinserção social. Além disso, também poderá contribuir cientificamente com a aplicação da CIF nessa população específica, pois atualmente a literatura abordando essa temática ainda é escassa.


 


MÉTODO


Trata-se de um estudo transversal, observacional, descritivo, com abordagem quantitativa dos dados. A pesquisa foi realizada na Unidade de Tratamento de Queimados (UTQ) do Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), em Brasília, DF, um hospital vinculado ao SUS, sendo uma unidade especializada de referência no atendimento ao paciente queimado no Centro-Oeste.


A amostra foi selecionada por conveniência, durante o período do dia 15 de maio a 31 de outubro de 2021. Cada paciente foi submetido a uma única avaliação, realizada no máximo uma semana antes da alta hospitalar. Os critérios de inclusão foram queimados, com idade mínima de 18 e máxima de 60 anos de ambos os gêneros, que ficaram internados por mais de 24 horas na UTQ do HRAN-DF para tratamento da queimadura. Os critérios de exclusão foram indivíduos analfabetos; que possuíssem qualquer nível de amputação (para excluir a influência da amputação nas variáveis analisadas) e presença de comprometimento cognitivo que impedisse a coleta de dados.


A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) através da Plataforma Brasil, sob CAAE de Nº 44980621.4.0000.5553, bem como ao Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (CEP/FEPECS), seguindo as normas da Resolução Nº 510, de 07 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Os indivíduos foram devidamente informados sobre a pesquisa e aqueles que aceitaram participar assinaram, voluntariamente, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).


Neste estudo foi elaborado um core set no qual avaliamos códigos referentes a funções do corpo e atividades e participação. Foi utilizado o primeiro qualificador, a fim de indicar a extensão ou magnitude da deficiência, sendo classificados em nenhuma deficiência (0), deficiência leve (1), deficiência moderada (2), deficiência grave (3) e deficiência completa (4).


Os códigos do core set foram: b710 (Funções relacionadas com a mobilidade das articulações), b7100 (Mobilidade de uma articulação), b7101 (Mobilidade de várias articulações), b720 (Estabilidade das funções das articulações), b7202 (Mobilidade dos ossos cárpicos), b730 (Funções relacionadas com a força), b7300 (Força de músculos isolados e grupos musculares), b740 (Funções relacionadas com a resistência muscular) e b780 (Sensações relacionadas com os músculos e funções do movimento), d410 (Mudar as posições básicas do corpo), d4104 (Pôr-se em pé), d420 (Autotransferências), d445 (Utilização da mão e do braço), d450 (Andar) e d4500 (Andar curtas distâncias).


Na primeira etapa, os pacientes incluídos no estudo foram submetidos à coleta das características clínicas e epidemiológicas a partir de um roteiro semiestruturado elaborado pela pesquisadora responsável. Após, foi realizada avaliação de força muscular por meio da escala Medical Research Council (MRC), que é uma escala simples que foi adaptada para avaliar a força muscular em pacientes críticos.


O escore é obtido através da avaliação de seis movimentos de membros superiores (MMSS) e membros inferiores (MMII) e a força é graduada entre 0 (plegia) a 5 pontos (força normal), totalizando um valor máximo de 60 pontos. Baseado no estudo de da Silva Filho et al.12 e no estudo de Hermans et al.13, os escores do MRC foram relacionados com os qualificadores da CIF. Neste estudo consideramos nenhuma deficiência (MRC de 60), deficiência leve (MRC entre 48 e 59), deficiência moderada (MRC entre 47-36), deficiência grave (MRC < 36) e deficiência completa (MRC 0). Para avaliação dos movimentos individualmente, foi definido como nenhuma deficiência (grau 5 -força muscular normal), deficiência leve (grau 4 - movimento ativo contra a gravidade e resistência), deficiência moderada (grau 3 - movimento ativo contra a gravidade), deficiência grave (grau 2 - movimento ativo com eliminação da gravidade) e deficiência completa (grau 0 - nenhuma contração).


Para a avaliação da função, foi utilizada a Escala de Estado Funcional em Unidade de Terapia Intensiva (FSS-ICU). É composta por cinco tarefas funcionais: rolar, supino para sentado, transferência de sentado para de pé, sentar na beira da cama e andar. Cada tarefa é avaliada usando uma escala ordinal de 8 pontos variando de 0 (incapaz de realizar de todo) a 7 (independência completa). O escore final é a soma dos itens 1 a 5, apresentando um valor mínimo e máximo de 0 e 35, respectivamente. Embasado no estudo de González et al.14, adaptamos e correlacionamos os escores da CIF para descrever as avaliações de mobilidade funcional, em que consideramos nenhuma deficiência (7), deficiência leve (4-6), deficiência moderada (3), deficiência grave (2) e deficiência completa (0-1).


Para avaliar as funções relacionadas à mobilidade das articulações, foi utilizada a goniometria, medindo-se as amplitudes articulares somente das regiões queimadas. A metodologia utilizada para realizar as medições e os valores considerados normais foi de acordo com as apresentadas por Marques15. Em relação à CIF, adotamos a metodologia usada no estudo de Lelis & Espindula16 no qual a definição dos intervalos dos graus de movimentos articulares foi realizada seguindo a referência das porcentagens dos qualificadores da CIF. Os qualificadores apresentam a seguinte sequência de porcentagens: 0-4% (Nenhuma deficiência), 5-24% (Deficiência leve), 25-49% (Deficiência moderada), 50-95% (Deficiência grave) e 96-100% (Deficiência completa).


Para estabelecer os valores em graus dos movimentos articulares com referência à porcentagem dos qualificadores, foi utilizado cálculo de regra de três simples e uma operação de subtração para permitir a parametrização dos graus articulares com os intervalos de porcentagens dos qualificadores. Achado o valor de “x”, ele foi subtraído do valor da amplitude de movimento articular (ADM) normal em graus. O valor final após a subtração definiu os intervalos de graus dos movimentos articulares.


Os movimentos avaliados foram: flexão e abdução de ombro, flexão e extensão de cotovelo, flexão e extensão de punho, flexão e abdução de quadril, flexão e extensão de joelho, flexão plantar e dorsiflexão de tornozelo. Diante da impossibilidade de realizar goniometria na articulação da mão, devido à presença de ferida, esta articulação foi medida levando em consideração: rigidez articular quando não há movimentação (Deficiência completa - 4), ADM com restrições graves quando a amplitude não alcança a linha média (Deficiência grave - 3), ADM com restrições moderadas quando alcança até a linha média (Deficiência moderada - 2), ADM com restrições leves quando a movimentação da mão ultrapassa a linha média (Deficiência leve - 1) e ADM normal quando há movimentação completa (Nenhuma deficiência - 0).


Os resultados foram tabulados em planilha Excel, analisados descritivamente e expressos em média, mediana, desvio padrão e percentagens. Para a associação das variáveis, foi realizado o teste Qui-Quadrado, sendo considerado o p-valor <0,05. Para avaliar a normalidade dos dados, foi utilizado o teste Shapiro-Wilk e, para correlação, foi realizado o teste de correlação de Spearman. Os dados foram analisados no Statistical Software Package Social Science (SPSS versão 21.0) e no software Jamovi (versão 1.6.23).


 


RESULTADOS


A amostra foi composta por 28 pacientes. A Tabela 1 apresenta as características clínicas e sociodemográficas dos pacientes que compuseram o estudo. Há maior predomínio de pacientes do sexo masculino (67,9%), com ensino fundamental incompleto (53,6%) e emprego informal (71,4%). Verificouse também que inflamáveis combinados com chamas foram as causas mais comuns das queimaduras (46,4%).


 



 


Com relação às regiões mais acometidas, houve predomínio de membro inferior direito (71,4%), membro inferior esquerdo (57,1) e membro superior direito (53,6). Em relação à SCQ, observamos uma variação de 3% a 37% de área queimada, com média de 15,1% e mediana de 14%. Sobre a profundidade, foi observado o predomínio de pacientes com queimaduras superficiais e parciais profundas (46,4%).


Na Tabela 2 encontram-se os resultados referentes à avaliação de funções do corpo com o qualificador que indica extensão ou magnitude da deficiência de acordo com a CIF. As análises indicaram que a maioria dos pacientes apresentou nenhuma deficiência nos seguintes descritores da CIF: mobilidade de uma articulação (b710), mobilidade de várias articulações (b7101), estabilidade das funções das articulações (b720), mobilidade dos ossos cárpicos (b7202), funções relacionadas com a resistência muscular (b740) e sensações relacionadas com os músculos e funções do movimento (b780). O restante apresentou deficiência leve, sendo os qualificadores referentes a funções relacionadas com a mobilidade das articulações (b710), força de músculos isolados e grupos musculares (b7300) e funções relacionadas com a resistência muscular (b740).


 



 


Em relação à avaliação de atividades e participação, os resultados mostraram que em todos os códigos avaliados a maioria dos pacientes apresentou nenhuma deficiência, sendo os dados expostos na Tabela 3.


 



 


Para verificar a associação entre as variáveis qualitativas nominais, foi realizado o teste Qui-Quadrado. Os resultados dos testes mostraram que não houve associação estatisticamente significante entre as causas das queimaduras e os códigos da CIF. No que diz respeito aos pacientes que realizaram procedimentos cirúrgicos e os códigos da CIF verificou-se também que não houve associação estatisticamente significante.


Com relação às variáveis região queimada e códigos da CIF, foi possível verificar uma associação estatisticamente significante entre a região de tronco posterior e o código d420 (autotransferências), sendo p-valor 0,034. As variáveis membro superior esquerdo (MSE) e o código b780 (sensações relacionadas com os músculos e funções do movimento) também apresentaram associação estatisticamente significante, sendo o p-valor 0,042.


A avaliação da normalidade dos dados foi realizada por meio do teste Shapiro-Wilk, no qual os dados mostraram-se anormais. Partindo disso, foi realizado o teste de correlação de Spearman para verificar a correlação entre SCQ e os códigos da CIF e as análises apontaram que não houve correlação estatisticamente significante entre essas variáveis.


 


DISCUSSÃO


Este estudo se propôs a avaliar a capacidade funcional em pacientes vítimas de queimaduras e buscar correlações entre as características clínicas e epidemiológicas e possíveis alterações na funcionalidade, visto que a queimadura, além da pele, pode atingir tecidos corpóreos, bem como suas camadas mais profundas, tendões, músculos e ossos de forma parcial ou total, levando à redução da elasticidade tecidual, deformidades e limitações na funcionalidade dos pacientes, assim como em suas atividades diárias17.


A nossa hipótese é de que haveria perda na capacidade funcional desses pacientes na alta hospitalar quando avaliados com a CIF, assim como observado em estudos anteriores11,18. Os achados do presente estudo corroboram em parte com essa hipótese, pois mesmo com o predomínio de nenhuma deficiência em códigos referentes a atividades e participação, houve a presença de deficiência leve em códigos de funções do corpo, evidenciando que os pacientes saem do ambiente hospitalar com déficit funcional leve, porém infere-se que as diferenças de medições entre os avaliadores e a presença de dor no momento da coleta dos dados pode ter interferido nesses resultados, além do que não houve acesso aos dados da admissão no momento da internação, não permitindo assim comparar o antes e o depois, sendo comparado somente com dados de normalidade.


É importante frisar que no local da pesquisa a fisioterapia é realizada rotineiramente desde o primeiro dia da internação com enfoque na mobilização precoce e na manutenção da funcionalidade, com objetivo de minimizar as limitações de ADM, perda de força e descondicionamento físico. Vale ressaltar que depois da alta hospitalar segue-se o acompanhamento ambulatorial; este é de suma importância, visto que a aderência do paciente ao tratamento poderá levar a uma funcionalidade sem deficiências.


Nos trabalhos de Carvalho et al.19 e Moulin et al.20 observamos dados semelhantes ao nosso estudo no que diz respeito a dados clínicos e epidemiológicos, em que também houve o predomínio do sexo masculino, baixa escolaridade e etiologia mais comum sendo associada a chamas.


Com relação à avaliação segundo a CIF, o estudo de corte longitudinal descritivo de Aragão et al.11 teve o enfoque em atividades e participação, tendo como população jovens e adolescentes queimados durante a hospitalização, observandose que a maioria apresentou deficiência moderada no código d510 (lavar-se), dificuldade leve no código d5202 (cuidar do cabelo e da barba) e dificuldade moderada no código d540 (vestir-se). Diferentemente do nosso estudo, que teve enfoque em atividades mais gerais relacionadas à mobilidade, este estudo fez a inclusão de atividades de cuidado pessoal em que o uso dos membros superiores pode impactar diretamente na execução dessas atividades.


Em relação a este estudo, foi observada uma relação estatisticamente significante entre as variáveis região de tronco posterior e o código d420 (autotransferências) e também as variáveis MSE e o código b780 (Sensações relacionadas com os músculos e funções do movimento), mostrando que existe uma dependência entre essas variáveis; sendo assim, infere-se que a ocorrência de queimaduras nessas regiões não interferiu em alguns aspectos da funcionalidade, visto que a maior parte da amostra se apresentou funcionalmente normal nos códigos citados acima, porém vale ressaltar que o N da pesquisa é pequeno, interferindo assim diretamente no resultados dessas associações estatísticas.


O estudo de Coria et al.18 realizou a avaliação do perfil funcional segundo a CIF, encontrando que em funções do corpo 50% dos pacientes avaliados tiveram déficit em várias articulações, 10% apresentaram déficit em mobilidade de uma única articulação e 40% desses pacientes perderam força de músculos isolados. Sobre atividades e participação foi observada dificuldade mais significante no código d449 (Transportar, mover e manusear objetos), apresentando de forma geral prevalência de deficiência moderada, seguida por deficiência.


Os resultados ratificam os achados de que os pacientes apresentam deficiências em mobilidade de várias articulações e força de músculos isolados, mas a maioria não apresenta deficiências quando se trata da mobilidade de uma articulação. A atividade de transportar, mover e manusear objetos não foi avaliada neste estudo, porém faz parte dos códigos relacionados à mobilidade. Esta pesquisa também não verificou a influência de fatores ambientais, que são importantes de serem incorporados em estudos futuros.


Como limitações desse estudo, podemos citar o tamanho da amostra, que se apresentou reduzido, permitindo considerar os resultados apenas para a população em questão. O fator que pode ter contribuído para isso pode estar relacionado ao período de coleta, que coincidiu com o aumento de amputações relacionadas a queimaduras, diminuindo assim os pacientes incluídos nesta pesquisa.


Outra restrição ocorreu na construção dos métodos para a avaliação dessa população, visto que há uma escassez de estudos abordando este tema, não havendo um core set para avaliar pacientes queimados em toda sua complexidade. Porém, um estudo recente de Lin et al.21 surge com uma proposta de criação de um programa de reabilitação eficaz e abrangente que permita ao paciente retomar sua função anterior. A partir disso uma equipe multiprofissional elencou um conjunto básico de códigos da CIF contendo 19 componentes de funções corporais, 5 de estruturas corporais, 37 abrangiam atividades e participação e 7 compreendiam fatores ambientais. Este conjunto básico preliminar oferece um sistema abrangente para avaliação e verificação de deficiência após queimadura, facilitando assim o processo de reabilitação dessa população, servindo como gatilho para novos estudos sobre esta temática.


De acordo com os Guidelines, a reabilitação física em queimaduras tem como objetivo principal restaurar a função de mobilidade, trazendo mais independência e desempenho funcional após a lesão. A mobilidade após a lesão por queimadura inclui a mobilidade dos membros e do tronco, bem como mobilidade funcional, como transferências e deambulação. O objetivo é manter e restaurar a amplitude de movimento, força e resistência dos membros e tronco. Isso inclui não apenas as regiões queimadas, mas também os membros não envolvidos.


A fisioterapia atua desde a fase inicial (aguda) do tratamento de queimaduras (Unidade de Terapia Intensiva - UTI), e deve se concentrar no suporte de sistema cardiorrespiratório, redução de edemas, profilaxia de decúbito, prevenção de contraturas. Paralelamente, trata-se de prevenção de cicatriz/cicatriz controle, preservando e/ou aumentando a amplitude de movimento e força muscular, aumento da elasticidade dos tecidos.


As intervenções se dão por meio da fisioterapia respiratória, posicionamento, movendo-se diariamente em amplitude total, aplicação de talas, mobilização de tecidos moles, exercícios isométricos, exercícios ativos e ativos assistidos, alongamento, mobilização gradual, equilíbrio e treinamento de coordenação22,23.


 


CONCLUSÕES


Os resultados desse estudo sugerem que os pacientes queimados saem de alta hospitalar apresentando algum comprometimento quando avaliados segundo a CIF, no qual podemos destacar a deficiência leve em mobilidade de várias articulações e funções relacionadas à força muscular, mas, apesar disso, é possível observar que em atividades básicas de mobilidade não houve prejuízos, visto que em todos os códigos de atividades e participação ocorreu predomínio do item nenhuma deficiência.


Na associação das variáveis foi possível observar que a região de tronco posterior se associou de forma significativa a autotransferências, assim como MSE se associou a sensações relacionadas com os músculos e funções do movimento.


Vale ressaltar que o pequeno tamanho da amostra não nos permite generalizar os resultados observados, todavia, é importante que sejam realizados novos estudos com esta temática para, assim, observar a funcionalidade de pessoas queimadas e como essas lesões podem impactar os diversos domínios de suas vidas.


 


REFERÊNCIAS


1. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Cartilha para tratamento de emergências das queimaduras. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.


2. Malta DC, Bernal RTI, Lima CM, Cardoso LSM, Andrade FMD, Marcatto JO, et al. Profile of cases due to burn attended in emergency care units in Brazilian capitals in 2017. Rev Bras Epidemiol. 2020;23 Suppl 1:e200005.


3. Arruda FCF, Castro BCO, Medeiros JF, Valadão WJ, Reis GMD. Análise epidemiológica de 2 anos na Unidade de Queimados do Hospital de Urgências Governador Otávio Lage de Siqueira, Goiânia, Brasil. Rev Bras Cir Plást. 2018;33(3):389-94.


4. Wardhana A, Basuki A, Prameswara ADH, Rizkita DN, Andarei AA, Canintika AF. The epidemiology of burns in Indonesia's national referral burn center from 2013 to 2015. Burns Open. 2017;1(2):67-73.


5. Zafani RT, Perrone RP, Vilaça DT, Faro SF, Moraes CM, Souza GCVF. Análise da evolução dos pacientes queimados de acordo com seu perfil epidemiológico na Santa Casa de Misericórdia de Santos, Brasil. Rev Bras Cir Plást. 2018;33(3):395-8.


6. Marinho LP, Andrade MC, Goes Junior AMO. Perfil epidemiológico de vítimas de queimadura internadas em hospital de trauma na região Norte do Brasil. Rev Bras Queimaduras. 2018;17(1):28-33.


7. Silva JAC, Vendramin FS, Martins MM, Lima AVM, Cunha LM, Borborema CLP. Epidemiologia, principais complicações e mortalidade dos pacientes atendidos em um Centro de Tratamento de Queimados na Amazônia. Rev Bras Cir Plást. 2018;33(1):104- 9.


8. O'Sullivan SB, Schmitiz T. Fisioterapia avaliação e tratamento. 5ª ed. Barueri: Manole; 2010. 1506 p.


9. Aldunate JLCB, Milcheski DA, Chang AA, Nakamoto HA, Tuma Júnior P, Ferreira MC. Utilização de matriz dérmica associada à terapia a vácuo e enxertia de pele em queimaduras profundas. Experiência inicial. Rev Bras Queimaduras. 2013;12(2):83-6.


10. Diego AM, Serghiou M, Padmanabha A, Porro LJ, Herndon DN, Suman OE. Exercise training after burn injury: A survey of practice. J Burn Care Res. 2013;34(6):e311-7.


11. Aragão L, Silva AL, Silva JMP, Santana EJ, Lima CF. Desempenho funcional no cuidado pessoal de adolescentes e adultos jovens com queimaduras segundo a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). Rev Bras Queimaduras. 2019;18(3):145-52.


12. da Silva Filho J, da Silva LF, Lima JM, de Almeida MCE, Jacob MM, de Moraes SAS. Caracterização de pacientes com sequelas após Infecção pelo vírus Chikungunya de acordo com a CIF. Rev Cienc Med Biol. 2020;19(3):386-93.


13. Hermans G, Clerckx B, Vanhullebusch T, Segers J, Vanpee G, Robbeets C, et al. Interobserver agreement of Medical Research Council sum score and handgrip strength in the intensive care unit. Muscle Nerve. 2012;45(1):18-25.


14. González Seguel FA, Arriagada Bravo AA, Lee Goic JE, Ugarte Ubiergo S. Feasibility and Clinical Utility of ICF Framework in Critical ill Patients: Case Report. Ann Musc Disord. 2017;1(1):1002.


15. Marques AP. Manual de Goniometria. 2a ed. Barueri: Manole; 2003.


16. Lelis JAP, Espindula AP. Parametrização da limitação da Amplitude de Movimento Articular (ADM) com os qualificadores da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). Apae Cienc. 2020;13(1):17-32.


17. Skopinski F, de Souza CC, Deon PH, Knorst MR, Resende TL. Fisioterapia dermato funcional na reabilitação do paciente queimado - relato de caso. In: Anais do Congresso Brasileiro de Fisioterapia Dermato Funcional. 2012 Nov 8-10; Recife, PE, Brasil. p. 8-12.


18. Coria GEM, Duarte LAM, Costa ACSM. Caracterização do paciente queimado segundo a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde [Trabalho de Conclusão de Curso]. Aracaju: Universidade Tiradentes; 2015. 23 p.


19. Carvalho BDP, Melchior LMR, Santos ER, Margarida MCA, Costa CSN, Porto PS. Perfil epidemiológico de pacientes vítimas de queimadura atendidos em um hospital público de urgência do estado de Goiás. Rev Bras Queimaduras. 2019;18(3):167-72.


20. Moulin LL, Dantas DV, Dantas RAN, Vasconcelos EFL, Aiquoc KM, Lima KRB, et al. Perfil sociodemográfico e clínico de vítimas de queimaduras atendidas em um hospital de referência. Nursing (São Paulo). 2018;21(238):2058-62.


21. Lin YR, Wang JY, Chang SC, Chang KH, Chen HC, Escorpizo R, et al. Developing a Delphi-Based Comprehensive Core Set from the International Classification of Functioning, Disability, and Health Framework for the Rehabilitation of Patients with Burn Injuries. Int J Environ Res Public Health. 2021;18(8):3970.


22. ISBI Practice Guidelines Committee; Advisory Subcommittee; Steering Subcommittee. ISBI Practice Guidelines for Burn Care, Part 2. Burns. 2018;44(7):1617-706.


23. Brychta P. European practice guidelines for burn care: Minimum level of burn care provision in Europe. In: Jeschke MG, Kamolz LP, Sjöberg F, Wolf SE, eds. Handbook of Burns. Vienna: Springer; 2012. p. 97-102.











Recebido em 12 de Janeiro de 2022.
Aceito em 2 de Agosto de 2023.

Local de realização do trabalho: Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), Brasília, DF, Brasil.

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.

Trabalho realizado como conclusão de programa de residência multiprofissional em Saúde do Adulto e Idoso pela Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS), vinculado à Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (FEPECS) e à Secretária de Saúde do Distrito Federal (SES-DF).


© 2024 Todos os Direitos Reservados