295
Visualizações
Acesso aberto Revisado por pares
Artigo Original

Qualidade de vida de crianças/adolescentes queimados atendidas no Sul do Brasil: percepção de si mesmas e de seus pais/responsáveis

Quality of life of burned children/adolescents assisted in the South of Brazil: Perception of themselves and her parents / guardians

Rebeca Sartini Coimbra1; Maria Elena Echevarría-Guanilo2; Soliane Scapin3; Camila Simas4; Natália Gonçalves5

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar a percepçao de qualidade de vida de crianças/adolescentes que sofreram queimaduras e de seus pais/responsáveis em acompanhamento ambulato-rial.
MÉTODO: Estudo piloto do tipo quantitativo, descritivo realizado com participaçao de oito crianças/adolescentes no período de junho de 2015 a junho de 2016. A qualidade de vida foi avaliada utilizando o instrumento Proteçao e Promoçao da Qualidade de Vida Relacionada com a Saúde em Crianças e Adolescentes, organizado em dez dimensoes: saúde e atividade física, sentimentos, estado emocional, autopercepçao, autonomia e tempo livre, família e ambiente familiar, aspectos financeiros, amigos e apoio social, ambiente escolar e provocaçao ou bullying, contemplando a realidade vivenciada em um período recordatório de uma semana.
RESULTADOS: Das 10 dimensoes avaliadas pelas crianças/adolescentes, quatro mantiveram-se acima da média de corte: "sentimentos", "autonomia", "aspectos financeiros" e "ambiente escolar". As mais comprometidas foram "estado emocional" e "amigos e apoio social"; já "autopercepçao", "família e ambiente familiar" e "provocaçao e bullying' foram mais bem avaliadas. Os pais/responsáveis avaliaram as dimensoes "saúde e atividade física", "aspecto financeiro" e "estado emocional" como as mais comprometidas, enquanto "autonomia", "amigos e apoio social", "ambiente escolar", "sentimentos", "autopercepçao" e "família e ambiente" foram mais bem avaliadas.
CONCLUSAO: Crianças/adolescentes avaliaram sua qualidade de vida relacionada à saúde de forma positiva em 90% das dimensoes, enquanto seus país/responsáveis avaliaram a qualidade de vida relacionada à saúde das crianças/adolescentes de forma positiva em 100% das dimensoes.

Palavras-chave: Qualidade Queimaduras. Criança. Adolescente.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To evaluate the perception of quality of life of children/adolescents who suffered burns and of their parents/guardians in outpatient follow-up.
METHODS: A quantitative, descriptive pilot study conducted with the participation of eight children / adolescents from June 2015 to June 2016. Quality of life was evaluated using the instrument Protection and Promotion of Health-Related Quality of Life in Children and Adolescents , organized into ten dimensions: health and physical activity, feelings, emotional state, self-perception, autonomy and free time, family and family environment, financial aspects, friends and social support, school environment and bullying or provocation, contemplating the reality experienced in a period week.
RESULTS: Of the 10 dimensions evaluated by the children / adolescents, four remained above the cut-off average: "feelings", "autonomy", "financial aspects" and "school environment". The most committed were "emotional state" and "friends and social support", as "self-perception", "family and family environment" and "provocation and bullying" were better evaluated. The parents / guardians evaluated the dimensions of "health and physical activity", "financial aspect" and "emotional state" as the most affected, while "autonomy", "friends and social support", "school environment", "self-perception "and" family and environment "were better evaluated.
CONCLUSION: Children/adolescents rated their quality of life related to health positively by 90% of the dimensions, while their parents/guardians assessed the quality of life related to health of children/adolescents positively by 100% of the dimensions.

Keywords: Quality of Life. Nursing, Practical. Burns. Child. Adolescent.

INTRODUÇAO

As queimaduras sao lesoes na pele causadas por um trauma, que podem ser caracterizadas como uma condiçao aguda ou crônica debilitante, que levam a morbidade e mortalidade1,2. Estima-se que no mínimo 875 mil crianças e adolescentes morram por lesoes nao intencionais e intencionais, a cada ano, no mundo3.

No Brasil, os dados também sao alarmantes, estima-se que ocorram cerca de 1 milhao de acidentes por queimaduras por ano, dos quais dois terços estao relacionados a causas térmicas no domicílio, nos quais frequentemente as vítimas sao crianças, adolescentes, adultos jovens e idosos1. Ainda, as queimaduras já sao consideradas a quinta causa de morte e hospitalizaçao em crianças e adolescentes de até 14 anos, revelando um problema de saúde pública que necessita de açoes preventivas permanentes1.

O domicílio vem sendo apontado como o local de maior ocorrência das queimaduras infantis1,2. Os acidentes usualmente ocorrem por escaldadura, contato com fogo e objetos quentes, por exposiçao a substâncias químicas, eletricidade e exposiçao ao sol1. Esses eventos frequentemente acontecem na presença dos pais/responsáveis, provocando nestes o sentimento de culpa, que aliado ao medo e ao desconhecimento do tratamento pode influenciar em sua relaçao com a criança/adolescente, ocasionando mudanças comportamen-tais, como a superproteçao, crises de ansiedade, raiva e sentimento de incapacidade2.

A gravidade da lesao gerada pela queimadura determina o tempo de internaçao e a necessidade de um acompanhamento ambulatorial. De modo geral, o tratamento pode ser um processo longo, que inclui trocas de curativos, desbridamentos, cirurgias reparadoras e reabilitaçao funcional2. Ainda, os danos físicos decorrentes da queimadura, como as cicatrizes hipertróficas, queloides, rigidez articular e contraturas, podem gerar incapacidades definitivas ou temporárias, comprometendo a realizaçao de atividades diárias e a imagem corporal da criança/adolescente1.

Todas essas modificaçoes físicas podem gerar alteraçoes psicológicas, tais como ansiedade, medo, isolamento social e dificuldades no convívio familiar impactando de forma negativa na qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS)4. A partir dessas premissas, evidencia-se a necessidade de avaliar a QVRS de crianças/ adolescentes que sofreram queimaduras, já que há uma escassez de estudos com esse objetivo no Brasil. Após a identificaçao dessas necessidades, a equipe multidisciplinar poderá investir em um diálogo atento e empático, que permitirá identificar as necessidades imediatas e tardias. E, conforme as necessidades, possam ser tomadas medidas de suporte individualizadas, como o apoio psicológico e a reabilitaçao5.

O conceito de QVRS vem sendo discutido amplamente nos últimos anos e vem sendo descrito como a percepçao do indivíduo em sua posiçao na vida, no contexto da cultura em que está inserido e sobre sua saúde física e psicológica, implicando em um modelo subjetivo e multidimensional que retrata a percepçao de si mesmo6. Desta forma, sabe-se que as queimaduras interferem na QVRS, principalmente nos aspectos sociais e emocionais. Por isso, a mensuraçao de tais aspectos pode auxiliar na definiçao de estratégias para melhorar o autocuidado, o compartilhamento de informaçoes e a sociabilidade, a fim de proporcionar um crescimento e desenvolvimento saudável para a criança/adolescente e seus familiares7.

Os pais/responsáveis vivenciam a queimadura da criança/adolescente como um evento inesperado e assustador, tendo uma experiência de sentimentos intensos de conflitos. Sentimentos que no processo de reabilitaçao e adaptaçao da criança sao essenciais2 e precisam ser avaliados a partir dos pais/responsáveis, uma vez que estes conhecem a criança/adolescente, podendo perceber alteraçoes de comportamento e dificuldades vivenciadas por elas, levando informaçoes importantes para a equipe multidisciplinar5.

A relevância da percepçao dos pais/responsáveis nao está somente em conhecer a vivência da criança/adolescente que sofreu queimadura, mas também de participar do ajustamento delas aos desafios a serem enfrentados, diante das alteraçoes de rotina e de imagem ocasionadas por este trauma. Ainda, possibilita que o conhecimento da percepçao dos pais/responsáveis torne mais humano e acolhedor o profissional que gerencia o cuidado e assiste o indivíduo, como tentativa de garantir que os danos físicos e psíquicos sejam minimizados2. Dessa forma, torna-se necessário avaliar a percepçao dos pais/responsáveis quanto a QVRS das crianças/adolescentes que sofreram queimadura.

Para isso, é preciso buscar o instrumento ideal para a amostra a ser estudada, visto que há uma diversidade de tipos de instrumentos para avaliaçao da QVRS de crianças/adolescentes, sendo que cada um contempla determinadas idades, e/ou aspectos emocionais, físicos e psicossociais8.

Um instrumento europeu que tem sido utilizado para avaliar a QVRS de crianças/adolescentes chama-se Proteçao e Promoçao da Qualidade de Vida Relacionada com a Saúde em Crianças e Adolescentes - KIDSCREEN-528. Este instrumento já foi aplicado para avaliar a diferença da QVRS em meninos e meninas9, porém ainda é pouco utilizado para analisar a QVRS de crianças e adolescentes queimadas, sendo encontrado apenas um estudo chileno que utilizou a versao reduzida KIDSCREEN-274.

O KIDSCREEN possui três versoes que permitem mensurar a QVRS em crianças/adolescentes através de dimensoes. A versao mais completa e a única validada no Brasil chama-se KIDS-CREEN-52, a qual permite monitorar o estado de saúde em um determinado momento de vida e detectar os subgrupos de risco avaliando dez dimensoes. Com a sua aplicaçao, é possível identificar as dimensoes mais comprometidas, para que assim sejam prevenidas consequências físicas e psicossociais para a criança/adolescente e familiares8.

Diante do exposto, o objetivo do presente estudo é avaliar a QVRS de crianças/adolescentes que sofreram queimaduras, e de seus respectivos país/responsáveis, que se encontravam em acompanhamento ambulatorial em um hospital pediátrico de referência do Sul do Brasil.


MÉTODO

Trata-se de um estudo piloto quantitativo descritivo realizado no ambulatório do hospital pediátrico de referência do Sul do Brasil, que ocorreu entre junho de 2015 e junho de 2016 com oito crian-ças/adolescentes em acompanhamento ambulatorial e seus respectivos pais/responsáveis.

O hospital em questao atende crianças/adolescentes de 0 a 15 anos incompletos, para tratamento agudo e reparador da queimadura, bem como aqueles em acompanhamento ambulatorial após a alta hospitalar, os quais muitas vezes necessitam de malhas com-pressivas, acompanhamento da cicatrizaçao, realizaçao de curativos complexos, orientaçoes aos pacientes e cuidadores sobre promoçao da saúde e qualidade de vida1,2.

Foram incluídas no estudo crianças/adolescentes de 8 a 15 anos e 11 meses em acompanhamento ambulatorial após a alta hospitalar, que nao apresentavam diagnóstico psiquiátrico ou alteraçoes de humor em estado agudo no momento da consulta, e se encontravam em companhia dos seus respectivos pais/responsáveis. Em relaçao aos critérios de exclusao, nao participaram do estudo as crianças/ adolescentes em atendimento ambulatorial na presença de um responsável nao envolvido diretamente no cuidado.

Baseada na análise dos dados do pré-teste, a amostra nao foi calculada, dessa forma, participaram do estudo todas as crianças/ adolescentes e seus respectivos pais/responsáveis que se enquadraram nos critérios desse estudo e que realizavam acompanhamento ambulatorial no momento que as entrevistadoras estavam no ambulatório.

Para avaliaçao da QVRS da criança/adolescente, foi utilizada a versao em português do Brasil do instrumento KIDSCREEN-52, que é uma ferramenta genérica usada para avaliaçao e monitoramento da QVRS de crianças e adolescentes saudáveis ou portadoras de doenças crônicas, entre 8 e 18 anos. Este instrumento é composto por duas versoes, uma voltada para a autoavaliaçao de QVRS em crianças/adolescentes e outra versao para avaliaçao dos pais/responsáveis sobre a QVRS da criança/adolescente. As duas versoes contemplam questoes de caracterizaçao, tais como, data de nascimento, sexo e presença de deficiência ou doenças crônica8.

A partir dos itens avaliados, em ambas as versoes, sao identificadas a frequência e intensidade de comportamentos/sentimentos ou atitudes específicas em um período recordatório de uma semana à coleta de dados, a partir de 52 questoes, que sao divididas em dez dimensoes: saúde e atividade física (explora o nível de atividade, energia e aptidao física da criança/adolescente), sentimentos (avalia o bem-estar psicológico, incluindo emoçoes positivas e satisfaçao com a vida), estado emocional (identifica sentimentos e emoçoes depressivas e estressantes), autopercepçao (explora a percepçao da criança/adolescente e de seu pai/responsável sobre a percepçao de seu corpo e da aparência), autonomia e tempo livre (incide sobre a oportunidade dada à criança/adolescente para criar e gerir o seu tempo social e de lazer), família e ambiente familiar (avalia a relaçao com os pais/responsáveis e o ambiente em casa), aspectos financeiros (avalia a percepçao da criança/adolescente e do seu pai/ responsável acerca da qualidade dos recursos financeiros), amigos e apoio social (explora a natureza das relaçoes da criança/adolescente com os pares), ambiente escolar (explora a capacidade cognitiva de aprendizagem e de concentraçao) e bullying ou provocaçao (abarca aspectos acerca dos sentimentos de rejeiçao pelos pares na escola). As respostas aos itens possuem cinco níveis ordinais de qualificaçao, de "nunca" a "sempre" ou "nada" a "muitíssimo"8.

O KIDSCREEN-52 foi o instrumento escolhido por apresentar algumas vantagens como: 1) alta confiabilidade retornada pela literatura do instrumento, indicando retorno de resultados mais fidedignos; 2) a avaliaçao é efetuada por meio da análise de dez dimensoes distintas entre si, facilitando o diagnóstico de possíveis pontos de insuficiência; 3) utilizaçao da escala de resposta do tipo Likert, que possibilita à criança uma escolha satisfatória; 4) é o único instrumento disponível encontrado, que avalia o aspecto bullying durante avaliaçao da QV10. No entanto, apresenta como desvantagem maior tempo necessário para seu preenchimento, se comparado às demais versoes dos instrumentos KIDSCREEN e outros8.

A coleta de dados foi realizada no ambulatório do hospital em questao por duas entrevistadoras previamente treinadas e foi dividida em duas etapas: na primeira foram apresentados os objetivos do estudo a cada criança/adolescente e seus pais/responsáveis. Após o aceite, foi solicitada assinatura do Termo de Assentimento (às crianças/adolescentes) e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (aos pais/responsáveis).

No segundo momento foi disponibilizado aos pais/responsáveis o questionário KIDSCREEN-52 versao para adultos e um questionário sociodemográfico, que contemplou informaçoes sobre a renda familiar, quantidade de irmaos em idade escolar e pessoas que faziam parte do núcleo familiar, procedência e grau de instruçao dos pais/responsáveis. Para as crianças/adolescentes, foi entregue o KIDSCREEN-52 versao crianças/adolescentes.

Os instrumentos foram preenchidos ao mesmo tempo pelos pais/ responsáveis e pelas crianças/adolescentes, sendo solicitado o preenchimento de forma individual. Cabe destacar que os participantes responderam ao questionário antes do atendimento no ambulatório ou após o atendimento e, em todos os casos, os participantes responderam ao questionário em lugar que os preservasse de circulaçao de pessoas. Ainda, durante o preenchimento os participantes poderiam solicitar auxílio do pesquisador caso sentissem necessidade. Após a coleta, os dados foram repassados para o Programa Excel-2010 da Microsoft Windows, processados e analisados no programa SPSS (Statistical Package for the Social Sciences) versao 20.0.

Conforme manual do instrumento KIDSCREEN-52, a análise foi realizada por meio de escores específicos e recodificada10. Para cada dimensao, os escores de Rasch sao calculados e transformados em valores com média de 50 e desvio padrao de 10, ou seja, valores acima de 55 indicariam uma boa percepçao de QVRS, ao passo que valores abaixo de 45 indicariam uma percepçao de QVRS ruim4. A partir disso, foram realizadas análises descritivas, médias, medianas e o desvio padrao de cada domínio do KIDSCREEN-52.

O presente estudo faz parte do macroprojeto intitulado "Realidade Virtual no tratamento da dor em queimaduras e o impacto na qualidade de vida", e objetivou abordar apenas o aspecto da qualidade de vida de crianças/adolescentes queimados, os quais correspondem à coleta de dados em ambiente ambulatorial. Este macroprojeto recebeu aprovaçao do Comitê de Ética em Pesquisa, com número de CAAE: 43559215.6.0000.0121. Ainda, foram respeitados os preceitos éticos conforme a Resoluçao 466/12.


RESULTADOS

Participaram deste estudo oito crianças/adolescentes, entre 10 e 15 anos, com média de idade 2,8 (DP=2), sendo seis do sexo masculino e duas do sexo feminino. Apenas uma informou ter doença crônica (asma). Também, participaram oito pais/responsáveis, dos quais quatro eram maes (50%), dois pais (25%), uma avó (12,5%) e uma tia (12,5%).

Dos oito pais/responsáveis, quatro (50%) possuem ensino médio, dois ensino primário (25%), um nao foi alfabetizado (12,5%), sendo realizados leitura e preenchimento junto com a entrevistadora, ainda, um nao soube responder (12,5%). Do total, sete (87,5%) estudaram em escola pública.

A renda familiar informada foi de: R$ 880,00 a 1760,00 por dois pais/responsáveis (25%), de até R$ 880,00 por três (37,5%), maior de R$ 1760,00 por dois (25%), e um responsável optou por nao responder (12,5%).

Das 10 dimensoes avaliadas pelas crianças/adolescentes no instrumento KIDSCREEN-52, destacaram-se "amigos e apoio social" e "estado emocional" como as dimensoes mais comprometidas, sendo que apenas o "estado emocional" ficou abaixo do ponto de corte (<50 pontos). Por outro lado, os aspectos melhor avaliados foram: "autopercepçao", "família e ambiente familiar" e "provocaçao e bullying" (Tabela 1).




Os pais/responsáveis avaliaram as dimensoes "saúde e atividade física", "aspectos financeiros" e "estado emocional" como as mais comprometidas. A dimensao "provocaçao e bullying" foi avaliada com menor comprometimento, apresentando média de 78,3 (DP=20,3), porém apresentou grande variabilidade (Tabela 1). As dimensoes que tiveram melhores avaliaçoes foram "autonomia", "amigos e apoio social", "ambiente escolar", "sentimentos", "auto-percepçao" e a que se destacou com melhor avaliaçao foi "família e ambiente" (Tabela 1).

Na análise das dimensoes, destacam-se os resultados encontrados para "Provocaçao e Bullying", em que crianças/adolescentes avaliaram em 90,8 (DP=I8,I0), enquanto seus pais/responsáveis avaliaram em 78,3 (DP=20,3) (Gráfico 1). Da mesma forma, na dimensao "estado emocional" as crianças obtiveram um valor médio total de 38,9 pontos (DP=13,1), e os pais obtiveram média total de 74,6 (DP=15,8).




DISCUSSAO

Para analisar e discutir os resultados, as dimensoes analisadas foram agrupadas por semelhança de temas, culminando em cinco categorias: Estado emocional e Sentimentos; Autopercepçao/Autonomia; Amigos/Apoio social, Ambiente escolar e Bullying; Aspectos financeiros e Família e ambiente; Saúde e Atividade física.

Estado emocional e Sentimentos

Dentre as dez dimensoes avaliadas, o "estado emocional" se destacou como um dos domínios mais afetados pelas crianças/adolescentes, pontuando a média de 38,9, enquanto pais/responsáveis obtiveram a média de 74,6, apresentando uma disparidade entre as percepçoes. Na dimensao "sentimentos" nao houve diferença significativa entre os resultados dos pais/responsáveis e das crianças/ adolescentes.

Os termos emoçao, estado emocional e sentimento sao comumente confundidos e mal interpretados, portanto, é importante ressaltar que sentimento refere-se à maneira como as emoçoes sao processadas pelo cérebro, ou seja, o sentimento atribui um significado à emoçao vivenciada, como se fosse um retrato mental da mesma. Já as emoçoes, sao reaçoes subjetivas a eventos que podem ser do ambiente interno e/ou externo ao organismo, caracterizadas por mudanças fisiológicas, experienciais e comportamentais, tendo como principal funçao gerar comportamentos e respostas proativas no indivíduo que o façam reagir, ou para impulsioná-lo a realizar algo ou para se proteger, contribuindo diretamente para o funcionamento dos sistemas cognitivo e de personalidade, assim como para o desenvolvimento da competência socioemocional11.

O estado emocional refere-se à forma como cada um responde às emoçoes sentidas, ou seja, para uma mesma emoçao pode-se apresentar um estado emocional positivo, com emoçoes e sentimentos de alegria e amor, ou pode apresentar um estado emocional negativo em que emoçoes e sentimentos podem ser de medo, tristeza e/ou culpa, levando a uma paralisaçao, fuga ou ataque. A forma como cada ser responde a emoçao é influenciada pelas experiências já vividas, dessa forma, o estado emocional começa a desenvolver-se a partir do nascimento11.

O estado emocional de crianças/adolescentes apresenta especi-ficidades em sua regulaçao. A partir dos 3 anos de idade a criança já pode criar estratégias para a regulaçao das emoçoes de acordo com o contexto, podendo utilizar diversos tipos de distraçao para controlar esses eventos mentais/emocionais. Com o avanço da idade e do desenvolvimento cognitivo, ocorrem mudanças em seu estado mental que lhes permitem evitar determinadas emoçoes através do comportamento reativo, da criaçao de estratégias verbais e sociais e do divertimento12.

O mundo imaginário da criança é criado a partir de concepçoes e ideias existentes em si mesma ou em sua formaçao social, que a leva a um processo criativo, no qual modifica e compreende a sua realidade, tornando-a mais atrativa ou assustadora, escolha que é influenciada pela maneira como a mesma foi criada e cuidada por seus pais/responsáveis12. Neste sentido, torna-se importante prestar atençao para a percepçao sobre a emoçao de ambas as partes.

Durante o evento traumático da queimadura, a criança/adoles-cente pode passar por três momentos: no primeiro, os danos físicos criam sensaçoes de insegurança e impotência, levando a dificuldades de regulaçao de suas emoçoes, alteraçoes de humor, dificuldades nas habilidades sociais e transtornos de sono. Na fase seguinte, ocorre o comportamento regressivo, em que passam a apresentar atitudes imaturas para sua idade; já a última fase inicia quando retornam ao comportamento adequado para sua idade e passam a demonstrar um maior controle das situaçoes estressantes13,14.

Ressalta-se que após essas fases a criança/adolescente tende a reviver o trauma com alguma frequência, podendo desenvolver medos específicos relacionados ao evento, como por exemplo, nao se aproximar do fogo e da banheira com água. Pode até modificar suas atitudes em relaçao às pessoas, tornando-se desconfiada do adulto envolvido no evento, e/ou apresentando maior irritabilidade com os familiares e com a rotina diária do tratamento, bem como, se isolando dos amigos e familiares. Possivelmente, isto tenha ocorrido com os participantes desse estudo13,14.

O trauma físico e psicológico ocasionado pela queimadura, aliado ao período de hospitalizaçao, propicia o surgimento de sintomas de ansiedade e de crises de pânico que sao relacionados à condiçao clínica, à mudança na imagem corporal, isolamento social e todas as mudanças na rotina. Essas alteraçoes causam um impacto na esfera emocional das crianças/adolescentes, podendo representar um fator de risco para o desenvolvimento infanto-juvenil, gerando situaçoes de crise entre a criança/adolescente e sua família, sentimentos de raiva e/ou culpa, sensaçoes de medo e abandono que podem provocar a perda da identidade, principalmente quando o ambiente nao proporciona condiçoes adequadas para a expressao da linguagem e para o estabelecimento de relaçoes sociais14.

Por isso, evidencia-se a necessidade da presença de um familiar com um vínculo bem estabelecido com a criança/adolescente, por este compreender um agente de socializaçao no desenvolvimento emocional da mesma, auxiliando no enfrentamento e na adaptaçao da nova situaçao através da escuta e da tolerância13. Ademais, é indispensável a criaçao de ambientes hospitalares acolhedores, o uso de recursos lúdicos e a importância de uma assistência humanizada e qualificada, facilitando a aceitaçao e recuperaçao da mesma15.

Porém, é preciso lembrar que os pais/responsáveis geralmente vivenciam uma desordem de sentimentos, como o sentimento de culpa pelo ocorrido, de impotência ao ver a criança/adolescente sentindo dor durante os procedimentos, ao vê-la infeliz com vergonha da aparência e ainda por medo da morte do filho/familiar. Essa mistura de sentimentos, incertezas e insegurança pode se agravar na ausência de informaçoes sobre o tratamento e a reabilitaçao da criança/adolescente. Manter um familiar desinformado implica em mantê-lo sem saber como nortear seus pensamentos com relaçao ao prognóstico, contribuindo para a ampliaçao e intensificaçao de sentimentos e atitudes negativas15.

Dos oito pais/responsáveis participantes desse estudo, quatro informaram ter ensino médio completo, três informaram ter ensino primário e um informou nao ser alfabetizado. É importante destacar que o nível de escolaridade dos pais/responsáveis pode influenciar sobre seu estresse e contribuir para a falta de compreensao sobre a forma de ajudar e de entender a criança/adolescente, tornando-os incapazes de fornecer o apoio emocional necessário a mesma13,15.

A diferença de percepçao entre os pais/responsáveis e as crianças/adolescentes desse estudo pode ter sido influenciada por esse aspecto. Assim, é imprescindível que os pais/responsáveis possam ser escutados e amparados, recebendo todas as informaçoes de forma clara e simples, tornando-os parte do tratamento e, consequentemente, mais seguros de si13,15.

Por serem fundamentais nesse processo de recuperaçao e adaptaçao da criança/adolescente queimada, os pais/responsáveis precisam auxiliá-las a reintegrar-se em seu corpo modificado, e encorajá-la a nao desistir, ajudando a desenvolver a consciência da força e dos talentos que tem e que pode desenvolver. Destaca-se que a forma como as crianças/adolescentes sao acompanhadas e apoiadas pode minimizar as dificuldades presentes.

Os achados deste estudo apontaram a dimensao "estado emocional" como a mais comprometida sob a ótica das crianças/adolescentes, contrariando a avaliaçao positiva dos pais/responsáveis, desvelando a importância da comunicaçao intrafamiliar e a necessidade de se compreender e incentivar a criança/adolescente durante o tratamento para o mais breve possível retornar as suas atividades, evitando o isolamento social e o derrotismo15.

Amigos/Apoio social, Ambiente escolar e Bullying

Os resultados do presente estudo permitem inferir que em geral os pais acreditam que seus filhos sofrem algum tipo de provocaçao e bullying mais do que as próprias crianças/adolescentes os evidenciam. Nesse sentido, torna-se importante compreender quais as circunstâncias definiriam a presença de bullying, e se há dificuldade no conceito ou na identificaçao de situaçoes que envolvem esta dimensao9.

A literatura apresenta diferenças entre o conceito de provocaçao e bullying. A provocaçao seria um conjunto de comportamentos verbais e nao verbais que ocorrem entre pares de forma isolada e o bullying seria um tipo de comportamento agressivo repetitivo e intencional, caracterizado pelo desequilíbrio de força ou de poder entre o agressor e a vítima. O bullying pode provocar sofrimentos capazes de acarretar importantes prejuízos para o desenvolvimento da vítima, como problemas escolares, queixas psicossomáticas, baixa autoestima e maior vulnerabilidade emocional16.

Devido ao termo bullying ainda ser usado frequentemente de forma equivocada em debates sociais e públicos, sobre situaçoes de violência e indisciplina realizadas de forma isolada, diferentemente do conceito correto, em que o bullying ocorre de forma intencional e continuada, as percepçoes dos pais/responsáveis sobre acontecimentos vivenciados pela criança/adolescente também podem se confundir, levando-os a análises incorretas e/ou confusas9.

Um cenário discutido e apontado como local de grande ocorrência do bullying é o ambiente escolar, onde comumente as crianças/adolescentes sofrem bullying ou praticam com os demais16. No presente estudo crianças/adolescentes demonstraram escores menores de QVRS no domínio "ambiente escolar" e maiores no domínio "Provocaçao e Bullying". Já, para os pais/responsáveis a avaliaçao foi contrária nessas duas dimensoes. Os achados sugerem que crianças/adolescentes nao sintam o bullying no ambiente escolar. Possivelmente, elas tenham avaliado sua QVRS mais baixa no ambiente escolar por outros aspectos, como a relaçao com os professores e a autoestima no processo de aprendizagem e concentraçao9.

Esse dado corrobora com a ideia de que o bullying nao ocorre somente nas escolas, dessa forma, é preciso refletir se os pais/ responsáveis entendem ou aceitam que isso possa estar ocorrendo dentro de casa.

Estudo aponta que aspectos como violência familiar, relaçao com familiares, conduta dos pais e nível socioeconômico podem contribuir para a ocorrência de bullying, seja como vítima ou agressor independente do cenário15. Ressalta-se que quando elas sofrem bullying geralmente tornam-se mais fracas, tímidas, introvertidas, sensíveis, quietas, com baixa autoestima e pouca interaçao social9,16.

Tratando-se do contexto da criança/adolescente queimada essas dificuldades podem se acentuar, pois assim que ela deixa o hospital é obrigada a passar por diversas modificaçoes que sao necessárias para sua recuperaçao, como cuidados com a pele, tais como, a nao exposiçao solar e a utilizaçao das malhas compressiva, a troca de curativos e a dor2. Portanto, a prevençao do bullying deve ser redobrada, visto que nessa fase da vida crianças/adolescentes apresentam grande preocupaçao com padroes estéticos7.

Além destes, outros aspectos devem ser observados, como o sentimento de incapacidade pela dependência necessária do outro para realizar atividades que antes realizava sozinho, como banho, preparo de alimentos, troca de roupas, entre outros; a predisposiçao ao isolamento social da criança/adolescente ao retornar para a escola devido à vergonha dos amigos pelas cicatrizes; a dificuldade em utilizar a malha compressiva e o medo de queimar-se novamente2.

A equipe de saúde tem papel fundamental nesse processo de identificaçao, dessa forma, precisa estar atenta aos sinais que a criança/adolescente pode apresentar durante o atendimento, tais como, olhar triste, tendência ao isolamento social, crises de choro, evasao escolar, baixa estima, distúrbios do sono, entre outros. Após a identificaçao, sao necessárias açoes sustentadas pela promoçao da saúde, desenvolvimento de práticas educativas, açoes com potencial para intervençao e prevençao do bullying16.

Todas as dificuldades já descritas enfrentadas pela criança/adolescente podem gerar nos pais/responsáveis um sentimento de super-proteçao e levá-los a realizar cuidados minuciosos para a prevençao de infecçoes, como a troca diária de lençóis e o uso de um banheiro exclusivo para a criança/adolescente; cuidados para prevençao de novos acidentes, como a proibiçao da criança/adolescente de estar no ambiente em que a queimadura ocorreu, além de cuidados para evitar a exposiçao das cicatrizes, chegando a manter a criança/adolescente em isolamento social2.

Dessa forma, o retorno à escola da criança/adolescente queimada amplifica o sentimento de superproteçao nos pais/responsáveis, pois imaginam que as cicatrizes, o uso da malha compressiva e a curiosidade dos colegas podem deixá-la envergonhada, magoada, irritada e triste2.

Possivelmente, o excesso de zelo dos pais/responsáveis possa ter contribuído para os achados encontrados, visto que eles demonstram perceber bullying em situaçoes em que crianças/adolescente nao percebem. Destaca-se que uma supervisao excessiva relacionada ao bullying impede que a criança/adolescente queimada construa formas positivas de relacionamento social, que cresça e se desenvolva como qualquer outra da sua idade, aprendendo a lidar com os olhares curiosos e/ou maldosos e as dificuldades diárias16.

Por isso, familiares, amigos e colegas devem estar preparados para receber a criança/adolescente queimada proporcionando sua autonomia, enquanto buscam ajudá-la em sua reabilitaçao, sem preocupar-se com o tempo de cicatrizaçao e sem questionar todas as mudanças estéticas que podem ter ocorrido. Dessa forma, é necessário que a família saiba lidar com os olhares, atitudes e perguntas da sociedade, de uma forma que nao deixe consequências no futuro da criança/adolescente2.

Ressalta-se a importância de existir um limite saudável entre a supervisao e a superproteçao sobre a criança/adolescente, uma vez que a maneira como os adultos educam, se comunicam, exercem sua supervisao e expressam suas emoçoes interfere no processo de desenvolvimento psicossocial das mesmas, sendo capaz de comprometer sua capacidade adaptativa de regulaçao emocional11,12.

Em contrapartida, um vínculo nao estabelecido, em que há um baixo grau de intimidade entre pais e filhos, pode dificultar o conhecimento destes sobre situaçoes vivenciadas fora de casa pelas crianças/adolescentes como, por exemplo, o bullying15.

Diante da fragilidade de alguns instrumentos e entendendo as consequências do bullying, considera-se necessário a criaçao de mais instrumentos que avaliam essa dimensao, visto suas possíveis consequências.

Autopercepçao e Autonomia

Os resultados encontrados apontam que houve uma diferença pequena entre as avaliaçoes das crianças/adolescentes e dos pais/ responsáveis. Crianças/adolescentes apresentaram uma autopercepçao melhor do que seus pais/responsáveis. Esses achados podem estar relacionados às diferentes formas que crianças/adolescentes e adultos vivenciam e enfrentam o adoecimento.

Crianças/adolescentes desenvolvem a capacidade de aprender com o adoecimento, o corpo frágil, a dor e a lidar com as suas emoçoes e com as dos familiares. Na busca de dar sentido às suas experiências, nessa fase elas elaboram alternativas para cuidar de si e dos outros. Para fugir da imagem distorcida pela queimadura, elas criam imagens novas de si, apresentando atitudes de resistência frente à doença, aproximando-se mais do paciente-agente do que de um paciente-passivo17. Possivelmente, por estas razoes os resultados apontaram uma avaliaçao positiva das crianças/adolescentes nestas duas dimensoes.

Estudo que avaliou o sentimento de impotência e imagem corporal em pacientes adultos queimados apontou que os participantes apresentaram sentimentos negativos em relaçao ao próprio corpo e descontrole emocional das situaçoes, além do sentimento forte de impotência7. O adulto após um evento traumático como a queimadura se vê condicionado à exigência de ter um padrao estético e funcional aceitável pela sociedade, com medo de nao se encaixar nos padroes e ser estigmatizado pelos demais.

As modificaçoes estéticas pós-queimadura podem levar a crises de pânico, depressao e outros distúrbios psicológicos2. É possível que por se colocar no lugar da criança/adolescente os pais/respon-sáveis do presente estudo apresentaram uma avaliaçao da QVRS inferior ao das crianças/adolescentes.

Os pais/responsáveis precisam adotar atitudes e um posicionamento seguro, deixando de lado seus ideais e sentimentos negativos sentidos no adoecimento, buscando fornecer à criança/adolescente suporte emocional e motivacional durante e após o tratamento2.

Aspectos financeiros/Família e ambiente

Alguns estudos afirmam que uma situaçao financeira desfavorável implica negativamente na qualidade de vida de crianças/adolescentes18, porém o presente estudo aponta dados contrários, em que elas percebem uma QVRS maior do que seus pais/responsáveis, independentemente da situaçao financeira familiar vivida. Corroborando com este dado, Caron19 descreve em seu estudo que relaçoes de amizade, família e escola sao os domínios que impactam na QVRS da criança/adolescente, enquanto que a situaçao financeira para eles é pouco considerada e/ou nao é observada, pois nao envolvem os relacionamentos e os sentimentos que os permeiam.

No contexto da criança/adolescente queimada, alteraçoes na organizaçao da rotina familiar e nas despesas comumente sao necessárias, e geralmente provocam reaçoes negativas nos pais13, pois nem sempre a situaçao financeira familiar permite que eles possam fornecer transporte para consultas médicas, medicamentos, terapias e toda assistência necessária, principalmente nos primeiros três anos após a queimadura20.

Após a queimadura, a família e a criança/adolescente enfrentam diversas mudanças na rotina familiar, que vao desde o desconforto físico, dificuldades de locomoçao, a vergonha da aparência e o isolamento social da criança/adolescente até o sentimento de culpa dos pais/responsáveis e a preocupaçao com o gasto financeiro. Esses agravos tornam esse evento um processo complexo que pode gerar nos envolvidos traumas e dificuldades emocionais por um período longo. Dessa forma, faz-se necessário o acompanhamento da equipe multidisciplinar para orientar e facilitar um ambiente propício para uma maior qualidade de vida de todos os familiares13.

Saúde e atividade física

Da mesma forma que nas dimensoes "sentimentos", "autoper-cepçao", "família e ambiente" e "aspectos financeiros", as crianças/ adolescentes avaliaram sua QVRS quanto à dimensao "saúde e atividade física" melhor que seus país/responsáveis.

Comumente, crianças/adolescentes enfrentam com maior facilidade as adversidades vivenciadas17, possivelmente por ter como facilitador o mundo imaginário que a ajuda a tornar mais atrativa sua realidade12. Em contrapartida, os adultos se preocupam com sua aparência, aspectos financeiros e com a funcionalidade de seu corpo6.

Em adultos que sofreram queimadura as dificuldades de enfren-tamento podem se estender após 1 ano do trauma, afetando principalmente os domínios "capacidade funcional", "estado geral de saúde", "vitalidade", "aspecto social" e "saúde mental". Ainda, a QVRS pode piorar quanto maior for à porcentagem de superfície corporal queimada (SCQ) e a profundidade das queimaduras6.

Já, a resiliência na infância e adolescência tende a ser maior durante o enfretamento de situaçoes difíceis como o tratamento de queimaduras. Llanos et al.4 demonstram que crianças/adolescentes dos 8 aos 18 anos com SCQ acima de 25% apresentam melhores escores de QVRS na dimensao "saúde e atividade física" do que crianças/adolescentes que nao sofreram queimaduras; ainda, afirmam que em geral nao há diferenças significantes entre os dois grupos, somente nas dimensoes "bem-estar" e "relacionamento com pais e colegas".

As interaçoes familiares afetuosas e sensíveis ajudam a promover a resiliência das crianças/adolescentes, pois impactam positivamente nos sistemas de respostas ao estresse emocional e fisiológico17. Dessa forma, destaca-se a importância de atitudes positivas dos pais/ responsáveis frente às crianças/adolescentes, mesmo que em seu íntimo sintam e/ou pensem de forma negativa13.

Embora a amostra estudada seja pequena, destaca-se que se trata de um estudo piloto, com o qual foi possível a padronizaçao e verificaçao dos passos de coleta de dados (1ogística e número de atendimentos). Em relaçao às limitaçoes, indica-se a diversidade encontrada de tipos de instrumentos para avaliaçao da QVRS e a escassez de estudos sobre QVRS com crianças/adolescentes que sofreram queimadura no Brasil, que permitissem maior discussao e comparaçao dos dados encontrados.

A presente pesquisa permite que profissionais de saúde possam refletir acerca das dificuldades enfrentadas pelas crianças/adolescentes queimadas e por seus pais/responsáveis, possibilitando qualificar a assistência prestada, a fim de evitar futuras sequelas e dificuldades de enfretamento. Ademais, essa pesquisa visa encorajar a realizaçao de novos estudos sobre a QVRS de crianças/adolescentes brasileiras que sofreram queimadura, objetivando novas possibilidades de reabilitaçao para esses pacientes.


CONCLUSAO

De maneira geral, as crianças entrevistadas avaliaram a sua QVRS de forma positiva, já que, de dez dimensoes, nove apresentaram pontuaçoes superiores a 70 pontos, as quais poderiam ter variado de zero a 100 pontos. Dentre elas, as dimensoes mais comprometidas foram o "estado emocional" e "apoio social". Da mesma forma, os pais/responsáveis avaliaram a QVRS das crianças/adolescentes de forma positiva, visto que, todas as dimensoes obtiveram pontuaçoes superiores a 70 pontos. Ainda, a dimensao "família e ambiente" foi avaliada como a mais positiva, enquanto que "saúde e atividade física" obteve a menor pontuaçao. Em ambos os grupos, as dimensoes afetadas podem ser atendidas durante o acompanhamento ambula-torial, minimizando possíveis sequelas.

A avaliaçao da QVRS de crianças/adolescentes vem crescendo nos últimos anos, porém evidenciou-se a ausência de pesquisas na área de queimaduras. Ademais, destacamos a necessidade de instrumentos específicos para avaliaçao da QVRS de crianças/adolescentes que sofreram queimadura, que considerem algumas especificida-des como, por exemplo, a fase de desenvolvimento e a dimensao bullying, visto que a inexistência desses aspectos dificulta a comparaçao de resultados entre os estudos.


REFERENCIAS

1. Takino MA, Valenciano PJ, Itakussu EY, Kakitsuka EE, Hoshimo AA, Trelha CS, et al. Perfil epidemiológico de crianças e adolescentes vítimas de queimaduras admitidos em centro de tratamento de queimados. Rev Bras Queimaduras. 2016;15(2):74-9.

2. Barbieri MC, Tacla MTGM, Ferrari RAP, Sant'Anna FL. Cotidiano de pais de crianças vítimas de queimadura após a alta hospitalar. Rev Soc Bras Enferm Ped. 2016 [acesso 2017 Jun 23];16(1):21-7. Disponível em: https://sobep.org.br/revista/images/stories/pdf-revista/vol16-n1/vol_16_n_1-artigo-de-pesquisa-2.pdf

3. Barcelos RS, Santos IS, Matijasevich A, Barros AJD, Barros FC, França GVA, et al. Falls, cuts and burns in children 0-4 years of age: 2004 Pelotas (Brazil) birth cohort. Cad Saúde Pública. 2017;33(2):e00139115.

4. Llanos N, Sthioul A, Yañez V, Orellana M, Hidalgo G. Niño Quemado Gran Secuelado. Perfil Clínico y Calidad de Vida. Rev Pediatr Electrón. 2014:11(2):2-8.

5. Caetano FMFS, Cabana MCLF, Lima CF. Autoestima em crianças e adolescentes com queimaduras. Humanae. 2017 [acesso 2018 Set 10];11(1):1-23. Disponível em: http://www.humanae.esuda.com.br/index.php/humanae/article/view/539

6. Echevarría-Guanilo ME, Gonçalves N, Farina JA, Rossi LA. Avaliaçao da qualidade de vida relacionada à saúde no primeiro ano após a queimadura. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2016 [acesso 2017 Mar 15];20(1):155-66. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=127744318021

7. Porto e Silva MC, Salomé GM, Miguel P, Bernardino C, Eufrásio C, Ferreira LM. Evaluation of feelings helplessness and body image in patients with burns. J Nurs UFPE On Line (Recife). 2016 [acesso 2017 Mar 15];10(6):2134-40. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/11227

8. Souza JGS, Pamponet MA, Souza TCS, Pereira AR, Souza AGS, Martins AMEBL. Instrumentos utilizados na avaliaçao da qualidade de vida de crianças brasileiras. Rev Paul Pediatr. 2014;32(2):272-8.

9. Alves MAR, Pinto GMC, Stadler H, Pedroso B. Aplicaçao do instrumento KIDSCREEN- 27 em crianças e adolescentes: comparativo entre meninos e meninas em idade púbere. Rev Stricto Sensu. 2016;1(1):22-9.

10. Guedes DP, Guedes JERP. Translation, cross-cultural adaptation and psychometric properties of the KIDSCREEN-52 for the Brazilian population. Rev Paul Pediatr. 2011;29(3):364-71.

11. Moreira PAS, Oliveira JT, Crusellas L, Lima A. Inventário de identificaçao de emoçoes e sentimentos (IIES): estudo de desenvolvimento e de validaçao.Psicol Crian Adolesc. 2013:3(1):39-66.

12. Saarni C. The interface of emotional development with social context. In: In: Lewis M, Haviland- Jones JM, Barrett LF, eds. Handbook of Emotions. 3rd ed. New York: Guilford Press. p. 332-47.

13. Campos ALS, Daher RP, Dias ACB. Estresse parental em maes de bebês, crianças e adolescentes com queimadura. Rev Bras Queimaduras. 2016;15(4):240-5.

14. Hostert PCCP, Motta AB, Enumo SRF. Coping with hospitalization in children with cancer: The importance of the hospital school. Estud Psicol (Campinas). 2015;32(4):627-39.

15. Oliveira VV, Fonseca AS, Leite MTS, Santos LS, Fonseca ADG, Ohara CVS. Vivência dos pais no enfrentamento da situaçao de queimaduras em um filho. Rev Rene (Fortaleza). 2015;16(2):201-9.

16. Medeiros WMB, Moita Minervino CAS, Duarte JDS, Cavalcanti JDT, Alves NT. Competência emocional e bullying: uma visao da neurociência. Pediatr Mod. 2014;50:100-10.

17. Passeggi MC, Rocha SM, De Conti L. (Con) viver com o adoecimento: narrativas de crianças com doenças crônicas. Rev FAEEBA Educ Contempor. 2016;25(46):45-57.

18. Flouri E, Midouhas E, Joshi H, Sullivan A. Neighborhood social fragmentation and the mental health of children in poverty. Health Place. 2015;31:138-45.

19. Caron J. Predictors of quality of life in economically disadvantaged population in Montreal. Soc Indic Res. 2012;107(3):411-27.

20. Rimmer RB, Bay RC, Alam NB, Sadler IJ, Richey KJ, Foster KN, et al. Measuring the burden of pediatric burn injury for parents and caregivers: informed burn center staff can help to lighten the load. J Burn Care Res. 2015;36(3):421-7.









Recebido em 3 de Janeiro de 2019.
Aceito em 13 de Março de 2019.

Local de realização do trabalho: Universidade Federal de Santa Catarina, SC, Brasil.

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.


© 2024 Todos os Direitos Reservados